sexta-feira, 29 de junho de 2012

sábado, 16 de junho de 2012

Os esquizofrênicos







Em um banco de jardim, fim de dia, entre pássaros apressados, grilos, cigarras, coaxar de sapos.

Lugar delicioso, ele diz.

Não é o lugar, é o instante, ela responde. Mágico.

A cigarra que vibra até estourar... Ele insiste.

É o instante, só o instante... Fosse o lugar seria uma gaiola, viver é o instante.

O monólogo de cada um lhes rouba a magia do momento, sentimento de doçura insuportável, posto que diáfano.  Suas falas os reasseguram do quê?

quarta-feira, 6 de junho de 2012

A clínica, a arte, a vida e a criação de conceitos

Imagem e texto de arquivos pessoais












 

Após milênios de cisões entre diferentes aspectos, indivisíveis, porém, como ciência e arte, sagrado e profano, corpo e mente, eu e não eu, e outros, nós ocidentais, a duras e alegres penas, vimos perseguindo e encontrando instrumentos para lidar com os impasses e ultrapassar dicotomias paralisantes, sem eliminar as contradições.
Entre os cronistas do cotidiano, contemporâneos, encontro mestres em outras maneiras de lidar com acontecimentos, problematizando-os e se preocupando em não banalizar sua complexidade, ao contrário, levando o leitor à percepção de novos e surpreendentes ângulos. Um dos recursos usados é o do autor se inserir na situação e/ou contexto que está trazendo, dizendo o que pensa, o que sente, como foi afetado pelas circunstâncias, ou seja, recorrendo às referências que brotam de sua experiência e de seu agir no mundo, em outras palavras, deixando a neutralidade, se expondo.
Não apenas a ciência é conceitual, também a arte e a vida. Em nosso cotidiano cada vez que descobrimos jeitos mais enriquecedores, ou sentimos a precisão de problematizar a rede de relações de situações que nos desafiam, em certa medida, criamos conceitos. Um conceito é para ser usado, uma ferramenta do pensamento que sustenta, temporariamente nossas ações no mundo, em qualquer dos campos que agimos. Não nasce para permanecer, mas para ser substituído por outros, podendo ser usado diferentemente em outros contextos. Quando isso ocorre, não é mais aquele conceito original, mas um outro que possa oferecer novos e diferentes recursos. Quando digo usado quero dizer, experimentado, vivido.
Na cultura ocidental (como em qualquer cultura) há saberes supostos para nos orientar (que podem desorientar, completamente!), e para me sentir garantida a eles me agarro. Quando faço isso não posso me apossar das referências, pois, em geral, estas permanecem alheias à minha experiência, não as encarno e por isso, se distanciam de mim como cenouras na frente do burrinho, não me servindo, pois não dariam conta dos desafios do momento. Paradoxalmente tenho as garantias do suposto saber, mas não as referências.
Estou em estado-de-risco quando esqueço o saber apriori, inclusive teorias e/ou conceitos encontrados por mim no passado e que me serviram em outros momentos, mas que talvez, agora não me sirvam. Quando, porém, abandono conhecimentos prévios, outro paradoxo, vou encontrando referências, me inserindo na situação e interagindo com ela. O que ocorre, entretanto, em estado-de-risco as referências vão se fazendo com a experiência e a vivência, e a bússola, assim como a posição da estrelas é criada a cada instante. Ou não. Não há garantias.
Estado-de-risco é um conceito que procuro, na medida do possível, usar (viver) na clínica, na arte e na vida.
Ferreira Gullar diz que é “um contumaz inventor de teorias – algumas até foram levadas à sério como a Teoria do Não-Objeto; outras injustamente desconsideradas. Nem por isso desisto, tanto que uma de minhas teorias mais recentes é a de que uma das funções do artista é criar o maravilhoso (ou o surpreendente), pela simples razão de que não encontramos no mundo maravilhas em quantidade suficiente para satisfazer a fome de maravilha que habita as pessoas.(...)”. (Folha de São Paulo, E 12, 30 de Janeiro de 2005)
A “teoria do não-objeto”, me parece, surgiu em um encontro entre artistas e amigos, quando os neo-concretos buscavam conceitos que exprimissem aspectos das esculturas (inclassificáveis) de Ligia Clark. Vamos supor que o ambiente em que estavam era descontraído, sem censuras ou julgamentos, viviam um encontro onde, em estado-de-risco, podiam se arriscar. Winnicott chamou de transicional os espaços que não podem ser censurados, para que os paradoxos se preservem; levamos (ou não) para a vida adulta, os espaços transicionais. Nesses espaços estamos em estado-de-risco, e o novo pode (ou não) surgir. Não nos esqueçamos, sem garantias, porém, paradoxalmente, é quando não as temos que se pode criar. E a censura, bem sabemos, costuma estar muito em nós, podemos ser juízes horríveis para nós mesmos.
Os espaços transicionais estão entre alguém e outro alguém, entre o livro e o leitor, entre eu e o mundo, infindáveis entres. Acima mencionei que um dos recursos usados para ultrapassar as dicotomias sem suprimir as contradições, seria o autor se inserir na situação e/ou contexto que está trazendo, tornando-se não apenas parte dele, mas um de seus elementos constituintes, como um dos caracteres de um ideograma. Outro recurso poderoso seria usar espaços transicionais - como os intervalos entre a arte, a ciência e a vida, por exemplo.
Estado-de-risco é ao mesmo tempo um intervalo, um lugar, um espaço transicional, um estado de percepção e consciência, um conceito e objeto transicional. Ao mesmo tempo singular – pois cada estado-de-risco só poderia ser único, é também absolutamente plural, pelo simples motivo de encontrar-se e se disseminar na vida. Uma das perspectivas de trabalhar nos intervalos seria a inclusão da simultaneidade: muitos aspectos ocorrendo simultaneamente.
Gosto muito quando FG afirma que “uma das funções do artista é criar o maravilhoso (ou o surpreendente)”, pois, nós humanos também somos feitos de monstros, fadas, bruxas, animais fantásticos; mas para mim o surpreendente nessa afirmação de FG é que, quando criamos novas referências, experiencialmente, quando usamos e trans-criamos conceitos, quando freqüentamos o estado de risco, nos sentimos vivos. Se não fizéssemos isso estaríamos submetidos todo o tempo a regras e referências apriori que existiram muito antes de nascermos e existirão (provavelmente) muito depois que nos formos. Assim, o surpreendente é também descobrir que não podemos criar a nós mesmo, nem ao mundo, mas podemos criar parcelas do mundo e parcelas de nós: a micro-política de Deleuze e Guattari.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

A quarta neta


















A quarta neta




Era uma vez a Carolina, uma menina de sete anos.
Xereta.
Perguntadeira.
Desconfiada.
Ciumenta.

Taurina e loira.
Cabeçuda, brava.
Neta de alemães pelo lado paterno.
E pelo materno, mineirinha de seiscentos anos.
Uma mistureba.

Carolina gosta muito da vovó Eliane, mas acha que para a vovó mineira, ela é só a quarta neta, “Que mico ser a quarta neta!”, “Não sou mocinha como a Ana Luiza, nasci depois do Gianluca e do Guilherme, e nem sou a caçula, como a Amanda”, pensa. As coisas que Carolina mais detesta são:

1- Ser a quarta neta, nem a mais velha, nem a caçula.
2- Quando o irmão, o Guilherme, um ano e sete meses mais velho bate nela.
3- E quando o Guilherme a arrasta e puxa pela roupa no corredor da escola, na frente dos colegas! Uma vergonha!

Por conta de uma arrastada Carolina deu um tapa merecido e estalado na cara do Guilherme. O tapa fez plaft, e ficou grudado na bochecha dele, escorrido, um tomate esborrachado. Vovó Eliane não viu Guilherme arrastar a Carolina, só viu o tapa estampar a cara do neto, e desenhar um mapa, ouviu o plaft! E chiou:

_ Não se bate assim no irmão, Carolina!

A menina ficou mais vermelha que o tapa na bochecha do irmão, e sentida com a vovó:

“Ela protege o Guilherme! Gosta mais dele que de mim! Não zangou dele me arrastar.”

Quase chorou, mas no lugar das lágrimas fechou o rosto, que ficou mais redondo. A boca de Carolina se abriu naquele rosto cor de rosa e redondo, e falou para a vovó:

_Você não manda em mim. Só a minha mãe!

Vovó ficou impertinente:

_ Avó também educa, Carolina!

E querendo ser engraçadinha, vovó continuou:

_ E quando a neta vê a vó educar diz: “Obrigada, vovó”.

Carolina sentiu que era um balão e teve medo de estourar e virar pedaços de borracha. Não um balão cheio de gás, um balão cheio de ira por causa da vovó. Até esqueceu o desaforo de ser puxada pelo Guilherme na frente dos colegas. De novo a boca se abre no rosto redondo e diz:

_ Não vou agradecer, vovó Eliane! Sou diferente de toda criança! Não quero mais ir para a casa da vovó.

Mas, Carolina foi para a casa da vovó Eliane. Era sexta feira, o dia de vovó Eliane pegar Carolina e o Guilherme no colégio. Passam pelo Super Mercado e compram salada. Carolina de braços cruzados finge que nem tem avó, mas anda atrás dela, com medo de ficar perdida. Já ouviu contar de criança perdida, e acha uma coisa muito triste. Suspira: “Vida de criança é difícil!” Chegam à casa dos avós. Carolina sente o cheiro de pastel.

Ainda está zangada, mas, o cheirinho de pastel... A menina come um monte de pastel de queijo, os que gosta. Vovó pede para Néia fritar tantos quantos a neta quiser. Para o Guilherme tem pastel de carne. Carolina pensa que inventou gostar de pastel de queijo, porque precisa ser diferente do Guilherme. “Graças a Deus a vovó agrada nós dois”, pensa a pequena mastigando um pastel crocante. Estão na mesa quatro pessoas, dois adultos, vovó e vovô, e duas crianças, Carolina e o Guilherme. A raiva fica amarrada ao pé da mesa. Carolina está feliz de não ter explodido como um balão. Continua inteira. Toma sorvete de sobremesa e considera, “Quem sabe a quarta neta também tem lugar no coração da vovó?”.

Mas, nesse pedaço Carolina fica muito triste, e começa a chorar de soluçar. Vovó Eliane senta a neta no colo e pergunta o que está acontecendo:

_ É por causa da vovó que você chora?

_ Não, vovó, é por causa da mamãe e do papai. Mamãe viaja muito. Está na Venezuela e só volta amanhã. Papai viaja muito, está em Brasília, e volta hoje de noite. Eu fico muito triste e tenho pesadelo.

_ Ah! A vovó entende você porque já fui criança, e também ficava triste quando meus pais saiam de noite e eu ficava em casa. Me lembro até hoje, vejo agora quando você fala dos seus pais, é como eu me sentia.

_ Você quer ficar perto dos seus pais, vovó?

_ Não, meu amor. Agora cresci e tenho uma neta chamada Carolina, estou com ela aqui no meu colo.

_ Vovó, você viu o Guilherme me arrastar no colégio?

_ Não vi. Foi por isso que você deu o tapa nele? Porque ele arrastou você?

_ Foi.

_ Então, peço desculpas. Você me desculpa, Carolina?

_ Desculpo, vovó.

Carolina ainda sentada no colo da vovó. Vovó levanta, de mãos dadas com ela. Vão para o sofá, e quando a quarta neta vê, vovó Eliane está contando uma história:

“Era uma vez a Carolina, uma menina de sete anos:
Xereta.
Perguntadeira.
Desconfiada.
Ciumenta”.

É a história que Carolina acaba de viver. A menina se aconchega na avó e pensa:
“Essa minha avó Eliane! Sei não!!!!!!!!!!!!”