domingo, 16 de janeiro de 2011

Para além da dualidade, seres humanos, unidade múltipla e indivisível



Resenha de Eliane Accioly

de "O Lobo da Estepe",

de Hermann Hesse

Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1979, 13° Edição

Tradução de Ivo Barroso

Evidentemente uma boa tradução é crucial para a leitura de autor de língua estrangeira. Não conheço Ivo Barroso, mas sua tradução me gratificou. Li com espanto todo o livro, leitura que me tomou, tanto que precisei parar colocando um intervalo entre algumas passagens, de tão densas. Não foram intervalos apenas de tempo, incluí outras leituras. Não necessariamente mais leves, apenas outras.

O tempo desta nova leitura de "O Lobo da Estepe", foi de quinze dias. Li o livro pela primeira vez em 1979, portanto, há trinta e dois anos. Certamente a leitura em 2011, foi uma outra, e sem dúvida, muito mais impactante, pois me parecia ler o livro pela primeira vez. Como se estivesse mais madura e preparada para receber este livro. E não como se..., estou mais madura e apta para essa leitura.

Me identifiquei com o Lobo da Estepe, suas dores e inquietações, seus sonhos e anseios, e o encontrar-se num "destino" sem saída, uma vida que não buscou, e para a qual, de certa maneira, foi empurrado. No livro o que se tratava, principalmente, era o fato de estar vivo e só. A personagem com cinquenta anos, uma idade nem tão avançada, aquela de Hermann Hesse quando escreveu este livro, sentia-se,entretanto, muito velho. Sofrendo de angústia, solidão, depressão, gota e enxaquecas terríveis, que feriam seus olhos e pareciam arrancá-los.

Ser um Lobo da Estepe não se trata apenas da dualidade homem-lobo, mas principalmente encontrar-se à margem das convenções "burguesas", das quais não conseguia, por outro lado, escapar completamente. Odiava o mundo burguês, e apesar dos pesares, precisava habitar este mundo, morando, por exemplo, numa casa alheia porém burguesa. O mundo do qual fugia, e com o qual se identificava. Não poderia viver num ambiente proletário, por exemplo, pois não se reconheceria caso o fizesse.

Amante da música e literatura a personagem precisava do contato com as artes, vivendo alguns momentos de êxtase, quando se sentia tocado pelo maior, momentos de transcendência e espiritualidade.

Num determinado ponto do livro a personagem revela que seria muito simplista ser apenas homem e lobo... Na verdade, (somos) múltiplos. Unidade complexa, com infinitos aspectos e facetas. Dar-se conta disto em si, leva alguém a estar alijado de um mundo convencional, para o qual, as pessoas precisam ser previsiveis. A percepção de que se é uma unidade múltipla exige renuncias e ao mesmo tempo, é a conquista de um caminho espiritual. Não de um homem em desespero _ embora viva momentos assim_ mas de alguém que crê e sonha.

Harry Haller, nome que aparece no meio do livro, descobre que o ego e a personalidade não passam de ficção, e que na verdade cada ser humano possui muitas almas. Pode ser homem, mulher, velho e jovem, animal e imortal _ como os grandes artistas, que nunca perecem...

Harry Haller (Hermann Hesse?!) se pergunta como a ciência se arranjaria com a "invenção" da esquizofrenia...ou seja, as divisões que levam ao adoecimento gravíssimo de se isolar da vida. A unidade múltipla das incontáveis almas, entretanto, não é divizivel. É multipla e coesa. Não é doença, mas a condenação de estar frente à vida, de ter como única tarefa estar vivo, experimentar sofrimentos profundos _ noites escuras da alma, e os inúmeros momentos luminosos.

Possuir/ser inúmeras almas _ tarefa de difícil administração _ segundo Harry não é intrínseco à humanidade, porém pode ser intuído e perseguido, e ao que parece, conquistado.









4 comentários:

  1. Lemos muito livros quando ainda muito jovens, sem a bagagem da experiência vivida...interessante a idéia de retornar aos livros que de certa forma nos marcaram e verificar o quanto deles ficou guardado na nossa memória profunda e modelou a nossa visão de mundo.Vou ver se faço o mesmo.Um abraço

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  2. Sou mais uma candidata a reler o livro...Afinal eu me espelhei e muito, no Lobo da Estepe... durante a minha solitária juventude.
    Só de ler seu texto já dei uma voltinha no passado e me vi sozinha, morando na rua da Bahia em BH, aos 22 anos, fumando um cigarrinho deitada no chão com as pernas apoidas num almofadão, lendo os livros de Hermann Hesse...
    Bjos

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  3. Mariinha,

    posso ver você em sua juventude, e a jovem se juntando a você agora.
    Inspirada em Hermann Hesse, estou relendo "O mal estar da civilização" de Freud, na nova tradução direta do alemão. Vejo que neste livro Freud fala do que HH diz em "O Lobo da Estepe" e em outros livros: da espiritualidade do homem, que o instiga e o inquieta...
    Afinal ele foi um judeu (com a bagagem mosaica)sensível e genial, ambicioso quis criar uma ciência da alma. E criou.
    Mas era positivista e precisava "provar" o que sabia que "provava provando" o gosto pela experiência, pelo seu próprio experimentar de seus sentimentos e sensações... mas nunca as provas racionais...
    Neste livro ele cria imagens metafóricas da cidade de ROMA em sua eternidade, ou seja, suas todas épocas, desde a fundação, a compara ao psiquismo humano... e ao mesmo tempo diz que não poderiamos vizualizar Roma Eterna em nosso psiquismo...
    Como não? "Pensamos em imagem", não é? E Freud fortemente pensava em imagens"...Olha como tratou os sonhos.

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