sábado, 11 de setembro de 2010




ARTE e PSICANÁLISE _ APRENDIZAGENS

Usando a metáfora da arte, a aprendizagem de psicanálise será ambígua. Na arte e na psicanálise os termos e as relações são movediços. Tomemos limite e limiar, conceitos de Walter Benjamin. A continuidade está para o limite, assim como o linear, para a ruptura da continuidade. Num momento no consultório somos convidados à suspensão, ou seja, a experimentar um limiar. O que ocorre, porém, na suspensão irrompe o estranhamento, uma vivência, outra continuidade se fazendo. Nossas vivencias criam continuidades, que por sua vez podem vir a ser rompidas a qualquer momento. Somos limite e limiar simultaneamente.
Em arte e psicanálise a meta-linguagem é fundamental. No atelier, como entre nós e nossos pares compartilhando necessariamente os acontecimentos dos consultórios, como em cada um dos lugares de nossas vidas. Por lugares me refiro ao que fazemos, às produções que colocamos no mundo. Ou coisas, no sentido de Lispector. O que fazemos enquanto psicanalistas e artistas tem vida própria, somos parte do processo, o acompanhamos, mas não temos controle sobre ele, que nos escapa. A escuta analítica, a escrita, a pintura, e inúmeros outros fazeres. Cada um de nós em seu percurso.
Para Sergio Fingermann _ artista, pintor, pensador e professor _ o que fazemos e colocamos no mundo são tentativas de narrar. Como nunca chegamos ao enunciado, diz ele, nossas tentativas fracassam. Cada tentativa de narrar fracassada é um tempo que permanece e se estende, por exemplo, nas camadas de uma tela, ou naquelas de um texto literário, ou na escuta do analista. Nossas tentativas depositam tempo no que fazemos. O que Sergio chama de fracasso, compreendo como o inacabado. Nossas obras são da ordem do inacabado, do imperfeito, assim como nós. Se não há distância entre o que somos e o que fazemos, somos tentativas de narrar inacabadas.
O olhar do pintor é construído. E a escuta analítica. No atelier de Fingermann descubro uma escuta no olhar do artista. Assim como descubro um olhar na escuta do analista. Escuta-olhar _ condições para a figurabilidade.
Escuta-olhar _ aprendizagem. Tudo que diz respeito ao ser humano é construído. As experiências em arte afetam nossas vidas, e assim, afetam o consultório. E vive versa. Vivo essas questões no atelier de Sergio Fingermann, onde há dois anos recebo aulas de pintura. Ali conversamos de arte psicanálise e vida.
Perguntei a Sergio como fazemos meta-linguagem em nosso grupo. Me respondeu _ Não somos nós, a obra faz a meta-linguagem, na medida em que se narra. Não foi propriamente uma resposta. A meta-linguagem da qual fala Fingermann, me reconduziu à inquietação quanto à importância de resgatar através das condições para a figurabilidade, a linguagem própria à obra, que nos permita escutá-la no que ela terá a dizer. Voltemos ao tempo das narrativas:
Uma pintura, um texto literário ou acadêmico, a escuta analítica _ tentativas de narrar que chamam temporalidades. Não poderíamos, no entanto, falar em primeiro ou segundo tempo. Tempo-memórias do imaginário radical, orações conjuntivas se relacionando e se misturando em deslocamentos em um tempo que se estende, o tempo da duração.
Para Castoriades, imaginário e simbólico, termos interdependentes. Sem supremacia de um sobre o outro. Diferenças, distinções, inter-dependência, atravessamentos, ambiguidades e ambivalências, certamente. Em procedimento estético trabalhamos em paradoxo, não com dicotomias que esterilizam, vida é contaminação.
Arte é aprendizagem, a presença do professor, fundamental. Mas não é possível ensinar arte, ou ensinar psicanálise. São aprendizagens que nascem do fazer. Fazendo coisas o corpo experimenta e aprende. Coisas, produções _ no sentido de Lispector.
Um dos textos freudianos do fim do século dezenove/início do XX, se não me engano, Estudos sobre a Histeria, (1903/05) traz as mulheres em seus trabalhos manuais, suas conversas sonhadoras, a consciência distraída e indolente. Olhos, mãos, o corpo todo engajado em fiar e tecer. No corpo inscrevem-se memórias. O corpo faz e sabe o que não alcançamos com nossa consciência racional, o que Freud chamava ponta do iceberg. Somos o que fazemos.
O corpo que aqui trago se aproxima da memória ou consciência corporal de Bérgson, consciência abissal, metáfora do inconsciente freudiano. Corpo da ordem do mito, que em 98 chamei corpo-de-sonho ou corpo-de-sensações.
Na arte e na psicanálise a aprendizagem não é imediata. O que demora a chegar, no entanto, não seriam os insights? Imagino que a aprendizagem que brota da experiência tenha início antes do primeiro encontro entre aluno e mestre, ou entre paciente e analista. O processo da transferência, campo ou campos de imaginário radical, no plural, o tempo da simultaneidade entre o self e outro. Transferência é campo de estranhamento, é imagem tempo.
Na Língua Portuguesa há uma diferença crucial entre ouvir e escutar. Ouvir remete ao ouvido, órgão dos sentidos. Escutar é imaginário radical. Durante anos uma analista escuta seu paciente, e ecoa para o paciente sua escuta, com as "mesmas" palavras. Ouvindo sua analista, um paciente se ouve. Um dia ele escuta o que a analista ecoa de sua fala. As palavras que parecem da analista, mas são dele, então, ganham corpo nele, e elese apossa das palavras que sempre foram dele. Nessas palavras encontra instrumentos para usar na vida. Assim se passa na formação do analista, na do artista, e na aprendizagem não didática de se experimentar paciente.

(Biografia In: A palavra in-sensata, poesia e psicanálise, e Corpo-de-sonho, arte e psicanálise).



















Bibliografia:


Accioly, E. F. A palavra insensata, poesia e psicanálise

Accioly, E. F. Corpo-de-sonho, arte e psicanálise.

(Grande parte da bibliografia).

Recentes:

Castoriades, C., A Instituição Imaginária da Sociedade. Paz e Terra, São Paulo.

Castro, R. O Anjo Pornográfico.

Battela, N. G., Clarice, uma vida que se conta. Ed Ática.

Fingermann, S., Uma Aprendizagem. Ed. BEÎ, São Paulo, 2010.


Moser, B. Clarice, Cosac Naif, São Paulo, 2009.

Wullschalager, J. Chagall, Amor e Exílio. Ed. Globo.

Coleção Taschen:

• Matisse

• Paul Cezanne