sábado, 29 de maio de 2010

O cotidiano e as pequenas tragédias



Acordou sentindo-se vazia de paixão. Folha em branco sem a alegria por estar viva e ter um dia a sua frente. Um vazio esquisito de rajada no peito e na barriga, vento varrendo a praça. Nem precisa despencar em um buraco sem fundo para vivê-lo, ela era o buraco.

Pensa em Frida Khalo, pintora mexicana que a impressionava pela obra, mas também pela vida trágica. Por que Frida Khalo lhe vinha agora? Talvez porque Frida Khalo sofreu de tudo, lhe parecia, menos de falta de paixão.

Acabara de reler o livro "Frida Kahlo e Diego Rivera", de Isabel Ancântara e Sandra Egnolff. O último quadro de Frida, uma celebração à vida. Natureza morta _ melancias partidas vermelho e verde, contra o fundo azul e branco de céu e nuvens. Em uma das frutas pintadas a artista escreveu "VIVA LA VIDA".

Naquela manhã vazia a mulher envereda pelo diário de Frida, escrito entre 1946 a 54, ano de sua morte, aos 47 anos.

Em 1953, após ter amputada a perna direita, em consequência do desastre de ônibus na adolescência, Frida desenha pés e uma perna como uma coluna grega. Da perna saem galhos de roseira, espinhos sem rosas. A pintora escreveu nessa página:

"Pies, para qué los quiero
Si tengo alas pa' volar".

Frida precisava dos pés e das asas, pensa a mulher. Não se pode escolher entre uns e outras. Frida não escolheu. Em muitos sentidos a vida a escolheu e a marcou da desmesura das paixões, amores, arte, dor, alegrias e tragédias.

Como em um sonho se recorda da escolha da pequena sereia que, apaixonada por um humano troca a voz por pernas, para deixar o mar e viver o amor. O que acabaria por matá-la. Sem voz não se pode passar.

Telefona para a filha que, com dor de cabeça, diz que lhe ligaria no dia seguinte. Coloca um lagarto na panela de ferro para cozinhar. Perde os óculos, barata tonta, acha os óculos. Atende o telefone, engano. O buraco permanecia. Almoça e ele não some. Chove lá fora, e dentro uma secura. Precisa sair pagar contas, passar na lavanderia, na casa de consertos, no super mercado, muidezas necessárias. Uma preguiça.

Frida Kahlo dizia das duas tragédias de sua vida _ o desastre de ônibus e Diego Rivera.

No desastre Frida foi empalada pela própria costela, quebrou a bacia e teve mutilada irremediavelmente uma das pernas. A direita. Sofreu abortos, não conseguiu gerar um filho.

Diego foi uma tragédia porque o amou perdida e apaixonadamente. Retribuída e admirada pelo marido como mulher e artista, mas Diego sofria de uma atração incurável por outras mulheres, pelas quais também se apaixonava. O muralista conta em sua auto-biografia que quanto mais amava uma mulher, mais precisava maltratá-la, e que fria foi a maior vítima desse seu desvio de caráter. Rivera e Khalo se separaram. E se casaram por uma segunda vez.

Em um de seus auto-retratos Frida pinta um beija-flor no lugar das sombrancelhas. Suas sobrancelhas perfeitas, negras e espessas lembravam as asas de um pássaro. Ferido.

Após o acidente de ônibus podia apenas ficar deitada, era uma adolescente cheia de vida, e sentia um tédio desesperado, que narrou em cartas para o namorado, Alejandro Gómez Arias. O rapaz foi mandado para a Europa pelos pais, que o quiseram afastar de Frida. O que a salvou foi a idéia da mãe de dar-lhe material para pintar. Frida lia sobre história da arte e pintava, foi auto didata.

Ao deixar o hospital, Frida Khalo recuperou-se na Casa Azul, onde nasceu, e mais tarde em seu casamento voltou a viver ali com Diego. Morreu na casa em que nasceu.

Nos sobre-olhos de alguns auto-retratos a imagem de Diego, como um terceiro olho. Em outros Khalo pinta lágrimas, ou se mostra ferida _ uma corça cravada de flexas com o rosto humano, aquelas sombracelhas, impressão digital. Retratando seu sofrimento Frida revela e resvala no sofrimento humano.

A chuva fina afina o frio. Troca de roupa, passa um baton, talvez faça as unhas e arrume o cabelo. A pequena mulher mergulhada nas pequenas tragédias cotidianas, faz uma prece ao deus das pequenas coisas. A rajada nas entranhas se torna um ardor quase suportável. Abre a porta e descobre que o vermelho vivo e o verde encontrados em muitos quadros de Frida a acompanham. Um pequeno milagre.

Corpo de artezã





Quando pinto e bordo ou faço artes percebo no meu corpo um tempo
sem pressa.

Meu corpo então, me lembra o da vovó Sinhá, com uma agulha na mão. Meu rosto é o rosto dela. Meus pensamentos os dela. Penso muito no meu povo, na minha família, sou ela bordando e devaneando.

_ O avesso do bordado tem que ser limpo como o lado direito _ Vovó dizia.

Quando bordo preciso do corpo escarranchado, solto, relaxado; minhas pernas se abrem, os pés se apoiam no chão, palmas plantadas.

As mãos dançam __________ a direita de um jeito, a esquerda de outro. Os olhos olham as mãos, não o olhar em foco, mas o olhar amplo e periférico da meditação, aquele olhar que temos para o horizonte.

Mexo com músculos finos que nunca mexo. Depois sinto dor nestes músculos, e a dor me ajuda a reconhecê-los.

Tenho vontade de fazer o que faço.

Babo o fio pra enfiar na agulha.

Agora, neste momento meu rosto artezão é o meu rosto, solto, relaxado. (Hoje mais cedo no trânsito entre minha mãe e minha irmã, meu rosto estava endurecido).

Quando faço arte, a memória está no presente e retrocede. Lembranças muito antigas da casa de minha avó. E há também uma memória prospectiva: fazer o que ando fazendo pintar, desenhar, bordar, fazer artes _ me projeta num tempo do espanto _ como posso fazer o que não sabia que podia?

domingo, 23 de maio de 2010

Diário da Av Paulista, domingo, 23 de maio




Duas velhas com bengalas. Fiquei em dúvida se seriam mãe e filha.
Minha neta garantiu que não, deveriam ser amigas. Minha dúvida permaneceu, mas entrei na de Analu, a neta de dezesseis anos. Penso ser chocante para Analu mãe e filha usarem bengalas juntas. Uma delas deveria ser bem mais moooçaaa. Enfim, ossos do ofício. E aqui o ofício é a vida. Entre eu e minha neta, uma geração, a de minha filha, mãe dela.

Um homem Lillás passou por nós, tomando refresco. Um homem todo lilás, roupa e sapatos Croc, lilás: Lilás-Man.

E o grupo do "Abraço de Graça", diante de nós, na frente do MASP. Estávamos em quatro. Não me atirei nos braços que me atraiam. Os companheiros (marido neto e neta) se rebelariam, imaginei. Analu, minha neta, compreendeu o chamado:

"As pessoas são fechadas, eles só pedem que elas se abram".

Em seguida Analu se atirou num abraço, e eu a segui. Que maravilhoso se abrir e abraçar!!!!!!!!!!!! Revolucionário. Um abraço pode ser revolucionário.

Eliane

sábado, 15 de maio de 2010

As referências mudam.




Nos meus trinta anos, J Bat, um conhecido húngaro que encontrava-se nos seus sessenta, me contou que naquele dia à noite iria na festa de um amigo que completaria cinquenta. Pensei, "Que velhos, o amigo e mais ainda, J Bat".

Hoje fui à festa de uma jovem que completou cinquentinha...

Os poemas







De onde brotam?
Em que grotas invisíveis
se escondem?

terça-feira, 11 de maio de 2010

Os gatos da Amanda




Tanico e Pipo,
gatos
que me protegem
das estrelas

Tina, minha avó,
está com eles

Na Terra Flora
me cuida,

Olímpia,
irmã gata,
companheira de brincar

(Amanda é minha neta caçula, seis anos.
As palavras do poema são as dela,
apenas capturei sua fala).

terça-feira, 4 de maio de 2010



uma alicia e sua palaoma





A surpresa

O gato-maravilha que em mim morreu
retorna às vezes, cara redonda e invisível

Sombra errante corre
a saudade de bandos vadios
e arrepia as ruas de meu corpo

Lábio de lua crescente
fixo só na aparência
ri de mim, Alice,
prisioneira dos contrários,
o país dos espelhos
onde me extravio

na aprendizagem banal e mágica
de ser humana