quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A Arte e a Psicanálise no Terceiro Milênio

DAS UNHEIMLICH _ Um Texto Freudiano de 1919

Apresentação na Jornada do Departamento de Formação em Psicanálise, Sedes Sapientiea, São Paulo, Outubro de 2009
Eliane Accioly

Coloquei assim, no terceiro milênio, pela atualidade do texto freudiano, e do texto de Victor Chklovski, um autor da poética e semiótica russas, que abordarei aqui, juntamente com Freud.
Trabalho com o UNHEIMLICH desde a década de 80. Elejo a tradução de estranho-íntimo. A escolha da expressão para traduzir um conceito é muito maior que apenas a tradução de palavras. Indica uma direção do pensamento, e a tomada de um posicionamento ético no mundo.
Pesquiso as aproximações e diferenças entre a prática clínica e a literária. Foi bastante difícil escrever o texto para esta apresentação, porque mais que um campo conceitual, o estranho-íntimo tornou-se a parte mais central do território de minha pesquisa, que caminha pelas fronteiras entre o fazer artístico, e minha maneira de compreender e viver a clínica. E mais que isto, encontrar um jeito de estar na vida, da forma mais abrangente.
Esse processo começou justamente pelo desejo, ou talvez mais ainda, pela necessidade de construir um jeito de pensar minhas duas práticas, meus dois ofícios, o que faço. Ou seja, as diferenças e pontos de intersecção entre os processos arte e psicanálise, e como esses afetam e transformam minha vida.
Voltando ao assunto de hoje, Freud lançou DAS UNHEIMLICH em 1919. Em 1917 o formalista russo, Victor Chklovski publicou A ARTE COMO PREOCEDIMENTO. Os dois autores que provavelmente nunca souberam da sincronia de seus respectivos trabalhos, tanto temporal como de conteúdo, trataram da suspensão do sentido habitual de um objeto. Ambos os textos visitaram a ciência da estética. E mais que isto, contribuíram para a construção desta. Suas concepções vigoram em nossa atualidade. (Vigorar no Houaiss tem dois sentidos: o sentido do vigor, da força, vitalidade. e atualidade. E o de ter vigência, ou seja, ser atual).
A pesquisa da dissertação de mestrado, publicada como "A palavra in-sensata, poesia e psicanálise", teve como eixo principal o conceito de procedimento estético. Por procedimento estético compreendo, em linhas bastante gerais, os artifícios que provocam a suspensão do sentido habitual de um objeto. O incrível é que cada procedimento estético é único e não mais se repete. Um poema é procedimento estético, assim como um sonho, uma sessão analítica, e por aí vai. Por meio de um procedimento estético, o objeto é retirado de seu contexto habitual, colocado num contexto singular, e então, visto sob novas luzes. Aí não mais será aquele objeto, mas um outro objeto, sempre em devir.
Em "A palavra in-sensata" o objeto com que trabalhei foi a palavra, matéria prima tanto do poeta como da escuta psicanalítica. No entanto, a palavra do poeta assim como a da escuta psicanalítica, ao mesmo tempo em que pertence à lingüística, é uma palavra fenomenológica. Isto é, uma palavra da ordem do acontecimento. Tanto que foi necessário aos estudiosos a criação de um outro campo, o da poética, para que os lingüistas os deixassem em paz. Uma paz sempre relativa.
DAS UNHEIMLICH traz um campo fenomenológico para a psicanálise. Um campo do acontecimento, da imanência, do devir. Do “happening”.
No seu ensaio Freud fala do estranhamento como uma percepção, um sentimento, um fenômeno. Trata-se de uma forma de percepção bastante específica. Não a percepção do senso comum. O estranho íntimo não é sonho, mas é parente do sonho, pois como no sonho, no UNHEIMLICH acontece a suspensão do senso comum. É também parente do poema, pela mesma razão.
Aquilo que é UNHEIMLICH provoca sentimentos que se acompanham por sensações. Podemos sentir um arrepio, um impacto, uma vertigem, um horror, um maravilhamento, vontade de rir, um nó na garganta. O texto freudiano possui diferentes vertentes, incluindo a do inconsciente recalcado. Meu recorte será o fenomenológico, que implica em uma forma expressiva de percepção e consciência.
Freud ilustra DAS UNHEIMLICH com suas próprias vivências. Ele viajava num trem, quando avista um homem sério, envelhecido, por quem sente pouca simpatia. Em fração de segundo, reconhece que “aquele senhor” era seu próprio vulto refletido no vidro da janela. No mesmo artigo, Freud conta da sensação de se encontrar perdido, dando voltas circulares em um local que, se não me engano, era uma cidade italiana. Acrescenta em seguida sua percepção que as ruelas pelas quais vagava, eram as de uma zona de prostituição.
Na época positivista em que viveu, Freud se defende acrescentando que, ele mesmo era pouco propício a sentimentos de estranhamento. No entanto, o sentimento de estranhamento é próprio do artista, do analista e de todos os seres humanos, principalmente à medida que se desenvolve a sensibilidade própria à arte. Ou à escuta analítica. Sem estranhamento não há arte. E sem o estranhamento não pode haver escuta analítica. Ao criar a psicanálise certamente Freud viveu muito estranhamento. E até nos contou deles, em vários momentos de sua obra.
Um fenômeno UNHEIMLICH é um acontecimento da ordem da estética. Vivemos e aos poucos ganhamos consciência do que estamos vivendo. Ou do como vivemos o que estamos vivendo. Clarice Lispector dizia: “Não há começo nem fim”, referindo-se não apenas ao processo de sua escrita, mas à vida, pois a vida entra em seus textos. Clarice dizia: “Sobrenatural é a vida”.
Gilles Deleuse, filósofo francês, usou o tempo como principal dimensão para a construção de seu trabalho. Ele dizia que o eixo temporal do acontecimento é paradoxal. No acontecimento o impacto estético nos coloca no tempo da simultaneidade. Como somos lentos, não nos damos conta da simultaneidade temporal na vivência de um acontecimento.
A vivência de um fenômeno UNHEIMLICH cria em nós um corpo de sensações. Eventualmente, o corpo de sensações pode vir a ser um instrumento, e podemos usá-lo para compreender a sessão analítica. Ou compreender uma obra de arte. Ou, simplesmente, compreender o momento que vivemos. Quando vivemos e experimentamos somos sujeito-processo, e não observadores. Ao viver o processo nos tornamos parte indissociável dele.
Em "Corpo-de-sonho arte e psicanálise", tese de doutorado, desenvolvo o conceito de corpo-de-sonho, ou corpo de sensações, instrumento a ser usado pelo artista ou pelo analista. Assim como pelos nossos pacientes. Potencialmente é próprio de todo ser humano.
Na vigência do corpo-de-sonho ou corpo-de-sensações estamos em estado de
risco. Ou seja, é necessário o consentimento do sujeito-processo para estar em estado de risco. Como é isso? No estado de risco consentimos em abandonar o saber suposto e as referências conhecidas. Vivemos então, o não saber. Mas ao viver o que não sabemos, podemos nos apropriar de referências que brotam de nós, por exemplo, o que percebemos como um frio na barriga, um aperto no peito, um sentimento de mal estar, sono, aborrecimento, vontade de rir. Ou outros indicadores. As referências também brotam de nossa percepção das circunstâncias que nos envolvem.. Ou seja, Deixando de lado o saber suposto, apenas nos apropriando do que ocorre em nós e fora de nós, criamos um corpo-de-sensações.
Compreendo a sessão analítica como campo de estranhamento. Posso permanecer em perfeito silêncio, sem nada confessar ao meu paciente, apenas me percebendo e me apossando de minhas sensações, ou dos sentimentos que me ocorrem. Ou seja, usando o que percebo em mim e na sessão, inclusive na expressão do paciente, em sua postura corporal, nas tonalidades de sua voz _ para obter algumas referências. Quando faço assim ganho a possibilidade de compreender melhor o que meu paciente está vivendo.
As referências que encontramos não significam que vamos saber o que não sabemos. Aí não seriam referências, mas garantias. Usando o estranho íntimo como instrumento, ou seja, aceitar viver a forma de consciência que é o estranhamento, quando temos sorte, nos coloca diante do que nem podíamos imaginar; como Freud se espantando com sua própria imagem refletida.
O estranho íntimo sempre nos surpreende, e para mim ele mostra que vida se faz por contágio. E também, que a vida está em qualquer dos campos de nossas pesquisas. A vida está inclusive no campo de quem trabalha com ciências exatas: ou seja, nada é absolutamente exato. A vida está em nossa escuta, no encontro com nosso paciente. Muitas vezes, as próprias teorias estéticas correm o risco de esterilizar a vida.
Pierre Fédida dizia que precisamos procurar uma maneira de abordar a arte que seja própria da arte. Da mesma forma, uma abordagem do material clínico que seja própria a ele. Embora falemos tanto em discurso, não trabalhamos com o discursivo. Estamos muito mais próximos à poética. A poética conhece profundamente as regras gramaticais, para desmanchá-las. Mas a poética não é um território sem lei. Para ela o rigor é fundamental. Posso dizer brevemente que rigor poético é a excelência da forma, ou seja, o procedimento estético que vigora e atualiza um objeto. Não há separação entre forma e conteúdo, pois o que há é processo.
Essas questões são paradoxais. Em psicanálise trabalhamos com o paradoxo e com o processo, mesmo quando não chamamos assim. Gosto de contar histórias, e as crianças pequenas, entre três e sete anos costumam me perguntar:
_ O que você contou é de verdade ou de mentira?
_ Você sabe o que é imaginação?
Elas geralmente sabem o que é imaginação. Então pergunto:
_ Sua imaginação é de verdade ou de mentira?
_ De verdade! E há um quê de indignação na resposta.
_ Então, o que conto é de verdade ou de mentira?
_ É da imaginação, elas respondem.
Uma categoria onde não há verdade ou mentira, mas outros mundos. Como no sonho, nas sessões, nos mitos, nas histórias contadas pelas avós.

O que tentei foi oferecer a vocês foi uma síntese de meu trabalho.

(Fecho o texto, que aproveitei como um espaço para mostrar um pouco de meu trabalho para vocês, com algumas questões:
A arte não é apenas enxergar de uma maneira especial e única, a arte é processo de expressão, mas principalmente de reflexão. A reflexão sobre o fazer artístico, por exemplo. Da mesma maneira, a sessão analítica é um campo de reflexão para analista. Assim o analista ajudará seu paciente a refletir e conhecer melhor sua própria vida. A terapia é um campo de experiências e de aprendizagem. Não a aprendizagem didática, mas o saber de si, do qual o paciente pode se apropriar.
Uma questão que sempre me parece bastante instigante e inesgotável: DAS UNHEIMLICH não é algo da ordem da representação, mas da apresentabilidade. E da experiência).
Numa próxima jornada gostaria de desenvolver essas e outras questões.