quarta-feira, 25 de março de 2009

A VOZ HUMANA: NEOGÊNESE E TERAPIA

A voz humana, anterior à palavra e à linguagem é o que há de mais intrínseco e arcaico pode haver na existência do ser humano, tanto no tempo untológico, como no tempo histórico social ou coletivo. Quando nasce um bebê, seu primreiro grito, os choros, ruídos e gestos já são sua voz.

Voz e linguagem são intrisicamente inseparáveis, embora diferentes. A voz é imanência, a linguagem estrutura. O campo de imanência que da voz humana, antecede a estrutura da linguagem, mas, desde o início da vida, a voz possui o sentido de inserir o bebê na linguagem. Essas primeiras inserções se guardam para sempre na vida das pessoas, e são o que se chama de linguagem materna, uma linguagem corporificada pelo corpo daqueles que oferecem os primeiros cuidados ao recém nascido, principalmente, corporificada pelo corpo materno. Assim, o ontológico e os primórdios da humanidade se encontram em cada ser humano, desde sempre, e agora em nossa atualidade. É parte de nossa humanidade.

Pensemos nos primórdios do tempo _ homens e mulheres, crianças e velhos ao redor do fogo _ se aquecendo não apenas ao calor da fogueira, mas ao calor da voz e presença humanas. As histórias narradas, ao que parece, eram cantadas ao modo de versos. A transmissão oral se dava ao calor da presença de uns e outros, o corpo social dos pais transmitindo corpo social aos filhos. Sociedades de Ser.

Na primazia da sociedade de Ter, sentimos falta de sociedades de Ser, mesmo se não nos damos conta. As sociedades de Ser são coletivas, e não feitas de uma somatória de indivíduos solitários. Na nostalgia do coletivo, saimos para ouvir contadores de histórias, poetas cantando seus poemas, espetáculos de música e teatro, outros. Não é a troco de nada que os contadores de histórias se proliferam, precisamos deles. Ouvi-los aquece o coração, trata do sentimento de solidão, do isolamento no qual ficamos trancados quando nos esquecemos de Ser.

Invisível e material ao mesmo tempo, a voz não é a palavra. A voz humana é algo que marca tanto o ser humano quanto a impressão digital. Se a voz é campo de imanência emanando do corpo humano, atravessa a própria impressão digital.

A voz está na palavra modulando-a, ritmando-a e fazendo-a vibrar. O corpo daquele que oralmente expressa o saber adquirido na experiência (consigo mesmo, com o outro e com o mundo) vibra. E vibra o corpo de quem compartilha escutando, recebendo.

Quando nos sentamos em torno de uma voz, ou de um conjunto de vozes, ou seja, de uma pessoa, ou de pessoas que contam suas experiências e histórias, sentimos nosso corpo vibrar, ecoar e ressoar com os efeitos do(s) outro(s) em nós. Nessas experiências vivemos momentos de nos diferenciar, e outros de nos identificar. Nos separamos e nos reunimos, e transcendemos indo além de nós mesmos.

No território mágico e singelo da voz humana, da narração _ o ser e o fazer, o ser e o pensar, o ser e o desejar se correspondem. O afeto circula. Nesse território não há fronteiras rígidas entre a prosa e o verso, ou entre a palavra e a imagem. Sob a magia da voz as fronteiras se diluem, inclusive aquelas entre eu e o outro, entre eu e o mundo.

Nossa voz não foi feita para falar com as paredes, mas para falar com outros humanos. Para circular e preencher vazios e ecos. Falamos com o outro, e uns com os outros.

No território da voz, da transmissão oral, há uma memória muito especial. Uma memória sempre em recuo, que se transmite de geração à geração, e sustenta a tradição oral ao longo de séculos. As cantigas de ninar e as de roda, os contos de encantamento são passados de geração para geração, ao calor do corpo e do leite maternos. Trata-se de uma memória sem fatos e sem datas. O surpreendente, porém, é que essa memória sempre em recuo, que permanece viva ao longo de gerações, é ao mesmo tempo uma memória prospectiva, uma memória futura, um vir-a-ser. Pois, a memória sempre em recuo é novamente criada a cada nova geração. Mesmo pelas gerações que ainda não chegaram, que são devir. Por exemplo, os netos de meus netos.

Crianças, adultos e velhos sentem essa memória futura, ao mesmo tempo, como algo estranhamente antigo, evocando vivências que trazem uma espécie de nostalgia sem que saibamos direito do quê, e junto, uma sensação de frescor e renovação.

O território da voz humana cria uma subjetividade que ao mesmo tempo se interioriza e aquece, e se exterioriza, se expandindo no compartilhamento. É um território de intimidade coletiva e compartilhada. A voz está sempre entre, ou seja, nos intervalos. No intervalo entre pelo menos duas pessoas, intervalo entre diferentes tempos e espaços, intervalo entre a voz e a palavra falada ou escrita, entre o sagrado e o profano, o erudito e o popular, e outros. A voz emana dos corpos, circula entre os corpos que estão presentes; a voz cria reverberações, ecos, cria presença e trás consigo a consciência de presença.

O território criado pela voz é o imaginário que compartilhamos com outros, imaginário transmitido através do contato afetivo, emocional e corporal.
Por isso, essa memória sem fatos e sem datas é como uma rã que salta sobre nós _ como disse Garcia Lorca em Las nanas infantiles. O imaginário guarda nele fatores e funções da constituição e criação de um ser humano. Ou seja, pela voz que trás consigo a linguagem, um pedaço de carne, o recém nascido, é transformado em um ser humano singular e único.

Os acontecimentos veiculados pela voz são assim, como pequenos animais vivos que saltam e nos fazem viver algo que se viveu no passado. Aquilo que se viveu e pode se atualizar em certos momentos de nossas vidas. Mais que uma lembrança, é um viver outra vez, de outro jeito. Essa memória é como os perfumes, os cheiros, o gosto, o sabor de uma comida, ou a cor das frutas e flores. Como um doce que se experimenta e faz doer as glândulas salivares das mandíbulas.

Quando nascemos essa memória já se encontra ou aqui. Mas, ao mesmo tempo, se não for criada junto o ser que nasce, este não pode ser capturado por ela. É uma criação simultânea _ a criação a do ser que precisa do ambiente para se fazer humano, e a criação de sua memória transgeracional.

Muitas vezes, é na terapia que o processo de inserção de alguém no território afetivo da voz humana é deflagrado. Embora o imaginário esteja aí e aqui, como repertório da língua, o imaginário é também prospectivo, criado a cada nova geração. Ou, criado em momentos posteriores da vida de uma pessoa. Podemos chamar esse acontecimento de neogênese.

O analista trabalha com as palavras, mas, no que diz respeito à memória, é com essa memória arcaica e prospectiva que ele trabalha no consultório. E ao trabalhar com ela, o analista sai necessariamente de sua individualidade, desmancha várias vezes, diariamente sua individualidade para entrar em um território coletivo. Território que, por outro lado, precisa ser criado, para ajudar o paciente a perceber que, também ele, mais que indivíduo, é processo.

A clínica, a arte, a vida e a criação de conceitos

Eliane Accioly
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A clínica, a arte, a vida e a criação de conceitos
Após milênios de cisões entre diferentes aspectos, indivisíveis, porém, como ciência e arte, sagrado e profano, corpo e mente, eu e não eu, e outros, nós ocidentais, a duras e alegres penas, vimos perseguindo e encontrando instrumentos para lidar com os impasses e ultrapassar dicotomias paralisantes, sem eliminar as contradições.
Entre os cronistas do cotidiano, contemporâneos, encontro mestres em outras maneiras de lidar com acontecimentos, problematizando-os e se preocupando em não banalizar sua complexidade, ao contrário, levando o leitor à percepção de novos e surpreendentes ângulos. Um dos recursos usados é o do autor se inserir na situação e/ou contexto que está trazendo, dizendo o que pensa, o que sente, como foi afetado pelas circunstâncias, ou seja, recorrendo às referências que brotam de sua experiência e de seu agir no mundo, em outras palavras, deixando a neutralidade, se expondo.
Não apenas a ciência é conceitual, também a arte e a vida. Em nosso cotidiano cada vez que descobrimos jeitos mais enriquecedores, ou sentimos a precisão de problematizar a rede de relações de situações que nos desafiam, em certa medida, criamos conceitos. Um conceito é para ser usado, uma ferramenta do pensamento que sustenta, temporariamente nossas ações no mundo, em qualquer dos campos que agimos. Não nasce para permanecer, mas para ser substituído por outros, podendo ser usado diferentemente em outros contextos. Quando isso ocorre, não é mais aquele conceito original, mas um outro que possa oferecer novos e diferentes recursos. Quando digo usado quero dizer, experimentado, vivido.
Na cultura ocidental (como em qualquer cultura) há saberes supostos para nos orientar (que podem desorientar, completamente!), e para me sentir garantida a eles me agarro. Quando faço isso não posso me apossar das referências, pois, em geral, estas permanecem alheias à minha experiência, não as encarno e por isso, se distanciam de mim como cenouras na frente do burrinho, não me servindo, pois não dariam conta dos desafios do momento. Paradoxalmente tenho as garantias do suposto saber, mas não as referências.
Estou em estado-de-risco quando esqueço o saber apriori, inclusive teorias e/ou conceitos encontrados por mim no passado e que me serviram em outros momentos, mas que talvez, agora não me sirvam. Quando, porém, abandono conhecimentos prévios, outro paradoxo, vou encontrando referências, me inserindo na situação e interagindo com ela. O que ocorre, entretanto, em estado-de-risco as referências vão se fazendo com a experiência e a vivência, e a bússola, assim como a posição da estrelas são criadas a cada instante. Ou não. Não há garantias.
Estado-de-risco é um conceito que procuro, na medida do possível, usar (viver) na clínica, na arte e na vida.
Ferreira Gullar diz que é “um contumaz inventor de teorias – algumas até foram levadas à sério como a Teoria do Não-Objeto; outras injustamente desconsideradas. Nem por isso desisto, tanto que uma de minhas teorias mais recentes é a de que uma das funções do artista é criar o maravilhoso (ou o surpreendente), pela simples razão de que não encontramos no mundo maravilhas em quantidade suficiente para satisfazer a fome de maravilha que habita as pessoas.(...)”. (Folha de São Paulo, E 12, 30 de Janeiro de 2005)
A “teoria do não-objeto”, me parece, surgiu em um encontro entre artistas e amigos, quando os neo-concretos buscavam conceitos que exprimissem aspectos das esculturas (inclassificáveis) de Ligia Clark. Vamos supor que o ambiente em que estavam era descontraído, sem censuras ou julgamentos, viviam um encontro onde, em estado-de-risco, podiam se arriscar. Winnicott chamou de transicional os espaços que não podem ser censurados, para que os paradoxos se preservem; levamos (ou não) para a vida adulta, os espaços transicionais. Nesses espaços estamos em estado-de-risco, e o novo pode (ou não) surgir. Não nos esqueçamos, sem garantias, porém, paradoxalmente, é quando não as temos que se pode criar. E a censura, bem sabemos, costuma estar muito em nós, podemos ser juízes horríveis para nós mesmos.
Os espaços transicionais estão entre alguém e outro alguém, entre o livro e o leitor, entre eu e o mundo, infindáveis entres. Acima mencionei que um dos recursos usados para ultrapassar as dicotomias sem suprimir as contradições, seria o autor se inserir na situação e/ou contexto que está trazendo, tornando-se não apenas parte dele, mas um de seus elementos constituintes, como um dos caracteres de um ideograma. Outro recurso poderoso seria usar espaços transicionais - como os intervalos entre a arte, a ciência e a vida, por exemplo.
Estado-de-risco é ao mesmo tempo um intervalo, um lugar, um espaço transicional, um estado de percepção e consciência, um conceito e objeto transicional. Ao mesmo tempo singular – pois cada estado-de-risco só poderia ser único, é também absolutamente plural, pelo siples motivo de encontrar-se e se disseminar na vida. Uma das perspectivas de trabalhar nos intervalos seria a inclusão da simultaneidade: muitos aspectos ocorrendo simultaneamente.
Gosto muito quando FG afirma que “uma das funções do artista é criar o maravilhoso (ou o surpreendente)”, pois, nós humanos também somos feitos de monstros, fadas, bruxas, animais fantásticos; mas para mim o surpreendente nessa afirmação de FG é que, quando criamos novas referências, experiencialmente, quando usamos e trans-criamos conceitos, quando freqüentamos o estado de risco, nos sentimos vivos. Se não fizéssemos isso estaríamos submetidos todo o tempo a regras e referências apriori que existiram muito antes de nascermos e existirão (provavelmente) muito depois que nos formos. Assim, o surpreendente é também descobrir que não podemos criar a nós mesmo, nem ao mundo, mas podemos criar parcelas do mundo e parcelas de nós: a micro-política de Deleuze e Guattari.
Eliane Accioly, brasileira, é Poeta, Terapeuta, e  pesquisadora nos campos da psicanálise e da arte. Doutora em Comunicação e Semiótica, mestre em Psicologia Clínica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Publicou  "A palavra-insensata, poesia e psicanálise", e "Corpo-de-sonho, poesia e psicanálise".

Além da clínica, a arte é sua militância. Organizou oficinas de poesia de 1994 a 2001. No primeiro semestre de 2000 trabalhou na oficina O que é poesia?, com adolescentes da CentroCultural Monte Azul, em São Paulo. Em novembro de 2003 apresentou seus poemas no XI Encontro Internacional de Mulheres Poetas em Mixteca, México. (XI° Encuentro de Mujeres Poetas en el Pais de las Nubes). No México levou suas oficinas a lunos e colégios dos pueblos que visitou. É autora de livros de poemas, contos e romance, resenhas e artigos.