quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A Arte e a Psicanálise no Terceiro Milênio

DAS UNHEIMLICH _ Um Texto Freudiano de 1919

Apresentação na Jornada do Departamento de Formação em Psicanálise, Sedes Sapientiea, São Paulo, Outubro de 2009
Eliane Accioly

Coloquei assim, no terceiro milênio, pela atualidade do texto freudiano, e do texto de Victor Chklovski, um autor da poética e semiótica russas, que abordarei aqui, juntamente com Freud.
Trabalho com o UNHEIMLICH desde a década de 80. Elejo a tradução de estranho-íntimo. A escolha da expressão para traduzir um conceito é muito maior que apenas a tradução de palavras. Indica uma direção do pensamento, e a tomada de um posicionamento ético no mundo.
Pesquiso as aproximações e diferenças entre a prática clínica e a literária. Foi bastante difícil escrever o texto para esta apresentação, porque mais que um campo conceitual, o estranho-íntimo tornou-se a parte mais central do território de minha pesquisa, que caminha pelas fronteiras entre o fazer artístico, e minha maneira de compreender e viver a clínica. E mais que isto, encontrar um jeito de estar na vida, da forma mais abrangente.
Esse processo começou justamente pelo desejo, ou talvez mais ainda, pela necessidade de construir um jeito de pensar minhas duas práticas, meus dois ofícios, o que faço. Ou seja, as diferenças e pontos de intersecção entre os processos arte e psicanálise, e como esses afetam e transformam minha vida.
Voltando ao assunto de hoje, Freud lançou DAS UNHEIMLICH em 1919. Em 1917 o formalista russo, Victor Chklovski publicou A ARTE COMO PREOCEDIMENTO. Os dois autores que provavelmente nunca souberam da sincronia de seus respectivos trabalhos, tanto temporal como de conteúdo, trataram da suspensão do sentido habitual de um objeto. Ambos os textos visitaram a ciência da estética. E mais que isto, contribuíram para a construção desta. Suas concepções vigoram em nossa atualidade. (Vigorar no Houaiss tem dois sentidos: o sentido do vigor, da força, vitalidade. e atualidade. E o de ter vigência, ou seja, ser atual).
A pesquisa da dissertação de mestrado, publicada como "A palavra in-sensata, poesia e psicanálise", teve como eixo principal o conceito de procedimento estético. Por procedimento estético compreendo, em linhas bastante gerais, os artifícios que provocam a suspensão do sentido habitual de um objeto. O incrível é que cada procedimento estético é único e não mais se repete. Um poema é procedimento estético, assim como um sonho, uma sessão analítica, e por aí vai. Por meio de um procedimento estético, o objeto é retirado de seu contexto habitual, colocado num contexto singular, e então, visto sob novas luzes. Aí não mais será aquele objeto, mas um outro objeto, sempre em devir.
Em "A palavra in-sensata" o objeto com que trabalhei foi a palavra, matéria prima tanto do poeta como da escuta psicanalítica. No entanto, a palavra do poeta assim como a da escuta psicanalítica, ao mesmo tempo em que pertence à lingüística, é uma palavra fenomenológica. Isto é, uma palavra da ordem do acontecimento. Tanto que foi necessário aos estudiosos a criação de um outro campo, o da poética, para que os lingüistas os deixassem em paz. Uma paz sempre relativa.
DAS UNHEIMLICH traz um campo fenomenológico para a psicanálise. Um campo do acontecimento, da imanência, do devir. Do “happening”.
No seu ensaio Freud fala do estranhamento como uma percepção, um sentimento, um fenômeno. Trata-se de uma forma de percepção bastante específica. Não a percepção do senso comum. O estranho íntimo não é sonho, mas é parente do sonho, pois como no sonho, no UNHEIMLICH acontece a suspensão do senso comum. É também parente do poema, pela mesma razão.
Aquilo que é UNHEIMLICH provoca sentimentos que se acompanham por sensações. Podemos sentir um arrepio, um impacto, uma vertigem, um horror, um maravilhamento, vontade de rir, um nó na garganta. O texto freudiano possui diferentes vertentes, incluindo a do inconsciente recalcado. Meu recorte será o fenomenológico, que implica em uma forma expressiva de percepção e consciência.
Freud ilustra DAS UNHEIMLICH com suas próprias vivências. Ele viajava num trem, quando avista um homem sério, envelhecido, por quem sente pouca simpatia. Em fração de segundo, reconhece que “aquele senhor” era seu próprio vulto refletido no vidro da janela. No mesmo artigo, Freud conta da sensação de se encontrar perdido, dando voltas circulares em um local que, se não me engano, era uma cidade italiana. Acrescenta em seguida sua percepção que as ruelas pelas quais vagava, eram as de uma zona de prostituição.
Na época positivista em que viveu, Freud se defende acrescentando que, ele mesmo era pouco propício a sentimentos de estranhamento. No entanto, o sentimento de estranhamento é próprio do artista, do analista e de todos os seres humanos, principalmente à medida que se desenvolve a sensibilidade própria à arte. Ou à escuta analítica. Sem estranhamento não há arte. E sem o estranhamento não pode haver escuta analítica. Ao criar a psicanálise certamente Freud viveu muito estranhamento. E até nos contou deles, em vários momentos de sua obra.
Um fenômeno UNHEIMLICH é um acontecimento da ordem da estética. Vivemos e aos poucos ganhamos consciência do que estamos vivendo. Ou do como vivemos o que estamos vivendo. Clarice Lispector dizia: “Não há começo nem fim”, referindo-se não apenas ao processo de sua escrita, mas à vida, pois a vida entra em seus textos. Clarice dizia: “Sobrenatural é a vida”.
Gilles Deleuse, filósofo francês, usou o tempo como principal dimensão para a construção de seu trabalho. Ele dizia que o eixo temporal do acontecimento é paradoxal. No acontecimento o impacto estético nos coloca no tempo da simultaneidade. Como somos lentos, não nos damos conta da simultaneidade temporal na vivência de um acontecimento.
A vivência de um fenômeno UNHEIMLICH cria em nós um corpo de sensações. Eventualmente, o corpo de sensações pode vir a ser um instrumento, e podemos usá-lo para compreender a sessão analítica. Ou compreender uma obra de arte. Ou, simplesmente, compreender o momento que vivemos. Quando vivemos e experimentamos somos sujeito-processo, e não observadores. Ao viver o processo nos tornamos parte indissociável dele.
Em "Corpo-de-sonho arte e psicanálise", tese de doutorado, desenvolvo o conceito de corpo-de-sonho, ou corpo de sensações, instrumento a ser usado pelo artista ou pelo analista. Assim como pelos nossos pacientes. Potencialmente é próprio de todo ser humano.
Na vigência do corpo-de-sonho ou corpo-de-sensações estamos em estado de
risco. Ou seja, é necessário o consentimento do sujeito-processo para estar em estado de risco. Como é isso? No estado de risco consentimos em abandonar o saber suposto e as referências conhecidas. Vivemos então, o não saber. Mas ao viver o que não sabemos, podemos nos apropriar de referências que brotam de nós, por exemplo, o que percebemos como um frio na barriga, um aperto no peito, um sentimento de mal estar, sono, aborrecimento, vontade de rir. Ou outros indicadores. As referências também brotam de nossa percepção das circunstâncias que nos envolvem.. Ou seja, Deixando de lado o saber suposto, apenas nos apropriando do que ocorre em nós e fora de nós, criamos um corpo-de-sensações.
Compreendo a sessão analítica como campo de estranhamento. Posso permanecer em perfeito silêncio, sem nada confessar ao meu paciente, apenas me percebendo e me apossando de minhas sensações, ou dos sentimentos que me ocorrem. Ou seja, usando o que percebo em mim e na sessão, inclusive na expressão do paciente, em sua postura corporal, nas tonalidades de sua voz _ para obter algumas referências. Quando faço assim ganho a possibilidade de compreender melhor o que meu paciente está vivendo.
As referências que encontramos não significam que vamos saber o que não sabemos. Aí não seriam referências, mas garantias. Usando o estranho íntimo como instrumento, ou seja, aceitar viver a forma de consciência que é o estranhamento, quando temos sorte, nos coloca diante do que nem podíamos imaginar; como Freud se espantando com sua própria imagem refletida.
O estranho íntimo sempre nos surpreende, e para mim ele mostra que vida se faz por contágio. E também, que a vida está em qualquer dos campos de nossas pesquisas. A vida está inclusive no campo de quem trabalha com ciências exatas: ou seja, nada é absolutamente exato. A vida está em nossa escuta, no encontro com nosso paciente. Muitas vezes, as próprias teorias estéticas correm o risco de esterilizar a vida.
Pierre Fédida dizia que precisamos procurar uma maneira de abordar a arte que seja própria da arte. Da mesma forma, uma abordagem do material clínico que seja própria a ele. Embora falemos tanto em discurso, não trabalhamos com o discursivo. Estamos muito mais próximos à poética. A poética conhece profundamente as regras gramaticais, para desmanchá-las. Mas a poética não é um território sem lei. Para ela o rigor é fundamental. Posso dizer brevemente que rigor poético é a excelência da forma, ou seja, o procedimento estético que vigora e atualiza um objeto. Não há separação entre forma e conteúdo, pois o que há é processo.
Essas questões são paradoxais. Em psicanálise trabalhamos com o paradoxo e com o processo, mesmo quando não chamamos assim. Gosto de contar histórias, e as crianças pequenas, entre três e sete anos costumam me perguntar:
_ O que você contou é de verdade ou de mentira?
_ Você sabe o que é imaginação?
Elas geralmente sabem o que é imaginação. Então pergunto:
_ Sua imaginação é de verdade ou de mentira?
_ De verdade! E há um quê de indignação na resposta.
_ Então, o que conto é de verdade ou de mentira?
_ É da imaginação, elas respondem.
Uma categoria onde não há verdade ou mentira, mas outros mundos. Como no sonho, nas sessões, nos mitos, nas histórias contadas pelas avós.

O que tentei foi oferecer a vocês foi uma síntese de meu trabalho.

(Fecho o texto, que aproveitei como um espaço para mostrar um pouco de meu trabalho para vocês, com algumas questões:
A arte não é apenas enxergar de uma maneira especial e única, a arte é processo de expressão, mas principalmente de reflexão. A reflexão sobre o fazer artístico, por exemplo. Da mesma maneira, a sessão analítica é um campo de reflexão para analista. Assim o analista ajudará seu paciente a refletir e conhecer melhor sua própria vida. A terapia é um campo de experiências e de aprendizagem. Não a aprendizagem didática, mas o saber de si, do qual o paciente pode se apropriar.
Uma questão que sempre me parece bastante instigante e inesgotável: DAS UNHEIMLICH não é algo da ordem da representação, mas da apresentabilidade. E da experiência).
Numa próxima jornada gostaria de desenvolver essas e outras questões.

domingo, 12 de julho de 2009

O cotidiano e as pequenas tragédias

Acordou sentindo-se vazia de paixão. Folha em branco sem a alegria por estar viva e ter um dia a sua frente. Um vazio esquisito de rajada no peito e na barriga, vento varrendo a praça. Nem precisa despencar em um buraco sem fundo para vivê-lo, ela era o buraco.

Pensa em Frida Khalo, pintora mexicana que a impressionava pela obra, mas também pela vida trágica. Por que Frida Khalo lhe vinha agora? Talvez porque Frida Khalo sofreu de tudo, lhe parecia, menos de falta de paixão.

Acabara de reler o livro "Frida Kahlo e Diego Rivera", de Isabel Ancântara e Sandra Egnolff. O último quadro de Frida, uma celebração à vida. Natureza morta _ melancias partidas vermelho e verde, contra o fundo azul e branco de céu e nuvens. Em uma das frutas pintadas a artista escreveu "VIVA LA VIDA".

Naquela manhã vazia a mulher envereda pelo diário de Frida, escrito entre 1946 a 54, ano de sua morte.

Em 1953, após ter amputada a perna direita, em consequência do desastre de ônibus sofrido na adolescência, Frida desenha pés e uma perna como uma coluna grega. Da perna saem galhos de roseira, espinhos sem rosas. A pintora escreveu nessa página:

"Pies, para qué los quiero
Si tengo alas pa' volar".

Frida precisava dos pés e das asas, pensa a mulher. Não se pode escolher entre uns e outras. Frida não escolheu. Em muitos sentidos a vida a escolheu e a marcou da desmesura das paixões, amores, arte, dor, alegrias e tragédias.

Como em um sonho se recorda da escolha da pequena sereia que, apaixonada por um humano troca a voz por pernas, para deixar o mar e viver o amor. O que acabaria por matá-la. Sem voz não se pode passar.

Telefona para a filha que, com dor de cabeça, diz que lhe ligaria no dia seguinte. Coloca um lagarto na panela de ferro para cozinhar. Perde os óculos, barata tonta, acha os óculos. Atende o telefone, engano. O buraco permanecia. Almoça e ele não some. Chove lá fora, e dentro uma secura. Precisa sair pagar contas, passar na lavanderia, na casa de consertos, no super mercado, muidezas necessárias. Uma preguiça.

Frida Kahlo dizia das duas tragédias de sua vida _ o desastre de ônibus e Diego Rivera.

No desastre Frida foi empalada pela própria costela, quebrou a bacia e teve mutilada irremediavelmente uma das pernas. A direita. Sofreu abortos, não conseguiu gerar um filho.

Diego foi uma tragédia porque o amou perdida e apaixonadamente. Retribuída e admirada pelo marido como mulher e artista, mas Diego sofria de uma atração incurável por outras mulheres, pelas quais também se apaixonava. O muralista conta em sua auto-biografia que quanto mais amava uma mulher, mais precisava maltratá-la, e que fria foi a maior vítima desse seu desvio de caráter. Rivera e Khalo se separaram. E se casaram por uma segunda vez.

Em um de seus auto-retratos Frida pinta um beija-flor no lugar das sombrancelhas. Suas sobrancelhas perfeitas, negras e espessas lembravam as asas de um pássaro. Ferido.

Após o acidente de ônibus podia apenas ficar deitada, era uma adolescente cheia de vida, e sentia um tédio desesperado, que narrou em cartas para o namorado, Alejandro Gómez Arias. O rapaz foi mandado para a Europa pelos pais, que o quiseram afastar de Frida. O que a salvou foi a idéia da mãe de dar-lhe material para pintar. Frida lia sobre história da arte e pintava, foi auto didata.

Ao deixar o hospital, Frida Khalo recuperou-se na Casa Azul, onde nasceu, e mais tarde em seu casamento voltou a viver ali com Diego. Morreu na casa em que nasceu.

Nos sobre-olhos de alguns auto-retratos a imagem de Diego, como um terceiro olho. Em outros Khalo pinta lágrimas, ou se mostra ferida _ uma corça cravada de flexas com seu rosto humano, sempre as sombracelhas, impressão digital. Retratando seu sofrimento Frida mostra o sofrimento humano.

A chuva fina afia o frio. Troca de roupa, passa um baton, talvez faça as unhas e arrume o cabelo. A pequena mulher mergulhada nas pequenas tragédias cotidianas, faz uma prece ao deus das pequenas coisas. A rajada nas entranhas se torna um ardor quase suportável. Abre a porta e descobre que o vermelho vivo e o verde encontrados em muitos quadros de Frida a acompanham. Um pequeno milagre.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

PINA BAUSCH


As manchetes de quarta feira, 1° de Julho, 2009, do Estadão e da Folha trouxeram a notícia da morte de Pina Bausch. Ao ler os jornais me perguntei:

“Como nunca eu ouvi falar dela?”, triste pelo que vivi como dupla perda: perder Pina Bausch, artista contemporânea tão especial, e principalmente, não ter noticiado sua existência enquanto viveu, até anteontem, no dia 30 de junho. No lugar de cair em depressão por minha alienação, vou tentar contar para vocês minha leitura dos jornais.

Pina Bausch 68 anos, coreógrafa e bailarina era alemã e vivia na cidade de Wuppertal, próxima de Düsseldorf. Ali dirigia sua companhia de dança, “Tranztheater Wuppertal”, (a tradução e dança teatro) fundada no início dos anos 70. Partiu de uma formação no balé clássico, e revolucionou, como coreógrafa, a dança do século XX.

"Não me interesso em como as pessoas se movem, mas o que as movem”. (Ilustrada, Folha de São Paulo, quarta feira, 1° de Julho). Uma de suas frases sempre repetida por ela mesma.

Dizia que seu método não é simples, que fazia perguntas aos seus bailarinos e muitas dessas perguntas ficavam sem respostas. No entanto, sua preocupação estava em saber o que sua companhia estava pensando, em cada momento. As perguntas antecediam cada espetáculo, e nunca um deles seria como o outro. A cada apresentação o grupo se reunia com Pina, discutindo e modificando alguma coisa. As opiniões diferentes, para ela, faziam com que o processo de criação se enriquecesse, como um quebra-cabeças que jamais se aprontaria.

Para ela era fundamental compreender o que as pessoas “estão sentindo”, e como entendem e sentem os próprios corpos. Para ela o Brasil ( e a Bahia em especial) causava fortes impressões, a mistura de culturas e etnias. “As pessoas se tocam, dançam juntas, o clima reduz o receio da proximidade. Nos países frios, ficamos” fechados em casa, o que dificulta a movimentação”. (Caderno 2, quarta feira, 1° de julho de 2009).

No começo de sua carreira não foi compreendida pela maioria, apenas por uma minoria. Muitos bailarinos a recusaram, e muitas vezes as casas de espetáculo ficaram vazias. Pina não desistiu.
Houve uma reviravolta a partir dos anos 90, quando todo bailarino sonhava trabalhar com ela, e as salas ficavam lotadas, os ingressos vendidos com meses de antecedência.

Estou aqui me perguntando, o que em Pina Bausch e sua morte, tanto me mobilizou? Em comum com Pina tenho ser mulher, ter 68 anos e outras preocupações. Por exemplo:

Como artista e terapeuta me preocupa os sentimentos das pessoas. Descubro desde há muito tempo, e a cada dia que sentimentos, percepções, sensações são vividos no corpo. Essa descoberta que, com esforço, qualquer um de nós pode alcançar, transforma o corpo em um instrumento delicado e sensível, cheio de referências para nós, que o habitamos. Nosso corpo, nele e com ele dançamos. Um contato maior com o próprio corpo é um contato maior consigo mesmo. Para mim o sentimento de tristeza é fundamental, e sem tristeza não há vida. Assim como a agressividade e a raiva são fundamentais. Os sentimentos proibidos precisam ser bem vindos, o que importa, é como usá-los. E só os usamos bem quando os incluímos e ao nos conhecermos. Também aprecio e respeito a boa e construtiva irreverência.

Pina Bausch foi irreverente, ousou desmantelar o balé clássico, para criar uma linguagem onde o corpo é vivo, e não técnico. Em sua arte ela se preocupou com a situação da mulher, e para ela a dor não era proibida, ela a incluía em seus espetáculos. Nos últimos tempos havia uma diferença substancial entre uma fase intensa e deprimente, dos anos 70 e 80, para uma fase mais recente, vista como “superficial e alegre”. A isto Bausch respondia diretamente:

“A questão é do que precisamos hoje. Estamos num momento terrível tenebroso, sério e assustador. Então, procuro dar um pouco de balanço, compensação para tudo isso”. (Caderno 2) Penso que ela está absolutamente correta: vivendo nossas tristezas, podemos viver nossas alegrias, e precisamos muito delas. (Coloco “ela está”, nas linhas acima, porque alguém que viveu como Pina viveu, construindo a obra que nos legou, permanecerá viva, para além da morte).

Por ser humana, no entanto, sou paradoxal. A morte real de Pina Bausch trouxe para mim a dor de perder uma pessoa com a qual me recém descobri cheia de admiração, calor, amor e afinidades.

Convido-os a entrar nos sites da Folha e do Estadão, e ler as reportagens do dia 1° de Julho.

Gostaria muito que pudéssemos dialogar acerca do acontecimento Pina Bausch, e também que me ajudassem a conhecê-la melhor.

quarta-feira, 25 de março de 2009

A VOZ HUMANA: NEOGÊNESE E TERAPIA

A voz humana, anterior à palavra e à linguagem é o que há de mais intrínseco e arcaico pode haver na existência do ser humano, tanto no tempo untológico, como no tempo histórico social ou coletivo. Quando nasce um bebê, seu primreiro grito, os choros, ruídos e gestos já são sua voz.

Voz e linguagem são intrisicamente inseparáveis, embora diferentes. A voz é imanência, a linguagem estrutura. O campo de imanência que da voz humana, antecede a estrutura da linguagem, mas, desde o início da vida, a voz possui o sentido de inserir o bebê na linguagem. Essas primeiras inserções se guardam para sempre na vida das pessoas, e são o que se chama de linguagem materna, uma linguagem corporificada pelo corpo daqueles que oferecem os primeiros cuidados ao recém nascido, principalmente, corporificada pelo corpo materno. Assim, o ontológico e os primórdios da humanidade se encontram em cada ser humano, desde sempre, e agora em nossa atualidade. É parte de nossa humanidade.

Pensemos nos primórdios do tempo _ homens e mulheres, crianças e velhos ao redor do fogo _ se aquecendo não apenas ao calor da fogueira, mas ao calor da voz e presença humanas. As histórias narradas, ao que parece, eram cantadas ao modo de versos. A transmissão oral se dava ao calor da presença de uns e outros, o corpo social dos pais transmitindo corpo social aos filhos. Sociedades de Ser.

Na primazia da sociedade de Ter, sentimos falta de sociedades de Ser, mesmo se não nos damos conta. As sociedades de Ser são coletivas, e não feitas de uma somatória de indivíduos solitários. Na nostalgia do coletivo, saimos para ouvir contadores de histórias, poetas cantando seus poemas, espetáculos de música e teatro, outros. Não é a troco de nada que os contadores de histórias se proliferam, precisamos deles. Ouvi-los aquece o coração, trata do sentimento de solidão, do isolamento no qual ficamos trancados quando nos esquecemos de Ser.

Invisível e material ao mesmo tempo, a voz não é a palavra. A voz humana é algo que marca tanto o ser humano quanto a impressão digital. Se a voz é campo de imanência emanando do corpo humano, atravessa a própria impressão digital.

A voz está na palavra modulando-a, ritmando-a e fazendo-a vibrar. O corpo daquele que oralmente expressa o saber adquirido na experiência (consigo mesmo, com o outro e com o mundo) vibra. E vibra o corpo de quem compartilha escutando, recebendo.

Quando nos sentamos em torno de uma voz, ou de um conjunto de vozes, ou seja, de uma pessoa, ou de pessoas que contam suas experiências e histórias, sentimos nosso corpo vibrar, ecoar e ressoar com os efeitos do(s) outro(s) em nós. Nessas experiências vivemos momentos de nos diferenciar, e outros de nos identificar. Nos separamos e nos reunimos, e transcendemos indo além de nós mesmos.

No território mágico e singelo da voz humana, da narração _ o ser e o fazer, o ser e o pensar, o ser e o desejar se correspondem. O afeto circula. Nesse território não há fronteiras rígidas entre a prosa e o verso, ou entre a palavra e a imagem. Sob a magia da voz as fronteiras se diluem, inclusive aquelas entre eu e o outro, entre eu e o mundo.

Nossa voz não foi feita para falar com as paredes, mas para falar com outros humanos. Para circular e preencher vazios e ecos. Falamos com o outro, e uns com os outros.

No território da voz, da transmissão oral, há uma memória muito especial. Uma memória sempre em recuo, que se transmite de geração à geração, e sustenta a tradição oral ao longo de séculos. As cantigas de ninar e as de roda, os contos de encantamento são passados de geração para geração, ao calor do corpo e do leite maternos. Trata-se de uma memória sem fatos e sem datas. O surpreendente, porém, é que essa memória sempre em recuo, que permanece viva ao longo de gerações, é ao mesmo tempo uma memória prospectiva, uma memória futura, um vir-a-ser. Pois, a memória sempre em recuo é novamente criada a cada nova geração. Mesmo pelas gerações que ainda não chegaram, que são devir. Por exemplo, os netos de meus netos.

Crianças, adultos e velhos sentem essa memória futura, ao mesmo tempo, como algo estranhamente antigo, evocando vivências que trazem uma espécie de nostalgia sem que saibamos direito do quê, e junto, uma sensação de frescor e renovação.

O território da voz humana cria uma subjetividade que ao mesmo tempo se interioriza e aquece, e se exterioriza, se expandindo no compartilhamento. É um território de intimidade coletiva e compartilhada. A voz está sempre entre, ou seja, nos intervalos. No intervalo entre pelo menos duas pessoas, intervalo entre diferentes tempos e espaços, intervalo entre a voz e a palavra falada ou escrita, entre o sagrado e o profano, o erudito e o popular, e outros. A voz emana dos corpos, circula entre os corpos que estão presentes; a voz cria reverberações, ecos, cria presença e trás consigo a consciência de presença.

O território criado pela voz é o imaginário que compartilhamos com outros, imaginário transmitido através do contato afetivo, emocional e corporal.
Por isso, essa memória sem fatos e sem datas é como uma rã que salta sobre nós _ como disse Garcia Lorca em Las nanas infantiles. O imaginário guarda nele fatores e funções da constituição e criação de um ser humano. Ou seja, pela voz que trás consigo a linguagem, um pedaço de carne, o recém nascido, é transformado em um ser humano singular e único.

Os acontecimentos veiculados pela voz são assim, como pequenos animais vivos que saltam e nos fazem viver algo que se viveu no passado. Aquilo que se viveu e pode se atualizar em certos momentos de nossas vidas. Mais que uma lembrança, é um viver outra vez, de outro jeito. Essa memória é como os perfumes, os cheiros, o gosto, o sabor de uma comida, ou a cor das frutas e flores. Como um doce que se experimenta e faz doer as glândulas salivares das mandíbulas.

Quando nascemos essa memória já se encontra ou aqui. Mas, ao mesmo tempo, se não for criada junto o ser que nasce, este não pode ser capturado por ela. É uma criação simultânea _ a criação a do ser que precisa do ambiente para se fazer humano, e a criação de sua memória transgeracional.

Muitas vezes, é na terapia que o processo de inserção de alguém no território afetivo da voz humana é deflagrado. Embora o imaginário esteja aí e aqui, como repertório da língua, o imaginário é também prospectivo, criado a cada nova geração. Ou, criado em momentos posteriores da vida de uma pessoa. Podemos chamar esse acontecimento de neogênese.

O analista trabalha com as palavras, mas, no que diz respeito à memória, é com essa memória arcaica e prospectiva que ele trabalha no consultório. E ao trabalhar com ela, o analista sai necessariamente de sua individualidade, desmancha várias vezes, diariamente sua individualidade para entrar em um território coletivo. Território que, por outro lado, precisa ser criado, para ajudar o paciente a perceber que, também ele, mais que indivíduo, é processo.

A clínica, a arte, a vida e a criação de conceitos

Eliane Accioly
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A clínica, a arte, a vida e a criação de conceitos
Após milênios de cisões entre diferentes aspectos, indivisíveis, porém, como ciência e arte, sagrado e profano, corpo e mente, eu e não eu, e outros, nós ocidentais, a duras e alegres penas, vimos perseguindo e encontrando instrumentos para lidar com os impasses e ultrapassar dicotomias paralisantes, sem eliminar as contradições.
Entre os cronistas do cotidiano, contemporâneos, encontro mestres em outras maneiras de lidar com acontecimentos, problematizando-os e se preocupando em não banalizar sua complexidade, ao contrário, levando o leitor à percepção de novos e surpreendentes ângulos. Um dos recursos usados é o do autor se inserir na situação e/ou contexto que está trazendo, dizendo o que pensa, o que sente, como foi afetado pelas circunstâncias, ou seja, recorrendo às referências que brotam de sua experiência e de seu agir no mundo, em outras palavras, deixando a neutralidade, se expondo.
Não apenas a ciência é conceitual, também a arte e a vida. Em nosso cotidiano cada vez que descobrimos jeitos mais enriquecedores, ou sentimos a precisão de problematizar a rede de relações de situações que nos desafiam, em certa medida, criamos conceitos. Um conceito é para ser usado, uma ferramenta do pensamento que sustenta, temporariamente nossas ações no mundo, em qualquer dos campos que agimos. Não nasce para permanecer, mas para ser substituído por outros, podendo ser usado diferentemente em outros contextos. Quando isso ocorre, não é mais aquele conceito original, mas um outro que possa oferecer novos e diferentes recursos. Quando digo usado quero dizer, experimentado, vivido.
Na cultura ocidental (como em qualquer cultura) há saberes supostos para nos orientar (que podem desorientar, completamente!), e para me sentir garantida a eles me agarro. Quando faço isso não posso me apossar das referências, pois, em geral, estas permanecem alheias à minha experiência, não as encarno e por isso, se distanciam de mim como cenouras na frente do burrinho, não me servindo, pois não dariam conta dos desafios do momento. Paradoxalmente tenho as garantias do suposto saber, mas não as referências.
Estou em estado-de-risco quando esqueço o saber apriori, inclusive teorias e/ou conceitos encontrados por mim no passado e que me serviram em outros momentos, mas que talvez, agora não me sirvam. Quando, porém, abandono conhecimentos prévios, outro paradoxo, vou encontrando referências, me inserindo na situação e interagindo com ela. O que ocorre, entretanto, em estado-de-risco as referências vão se fazendo com a experiência e a vivência, e a bússola, assim como a posição da estrelas são criadas a cada instante. Ou não. Não há garantias.
Estado-de-risco é um conceito que procuro, na medida do possível, usar (viver) na clínica, na arte e na vida.
Ferreira Gullar diz que é “um contumaz inventor de teorias – algumas até foram levadas à sério como a Teoria do Não-Objeto; outras injustamente desconsideradas. Nem por isso desisto, tanto que uma de minhas teorias mais recentes é a de que uma das funções do artista é criar o maravilhoso (ou o surpreendente), pela simples razão de que não encontramos no mundo maravilhas em quantidade suficiente para satisfazer a fome de maravilha que habita as pessoas.(...)”. (Folha de São Paulo, E 12, 30 de Janeiro de 2005)
A “teoria do não-objeto”, me parece, surgiu em um encontro entre artistas e amigos, quando os neo-concretos buscavam conceitos que exprimissem aspectos das esculturas (inclassificáveis) de Ligia Clark. Vamos supor que o ambiente em que estavam era descontraído, sem censuras ou julgamentos, viviam um encontro onde, em estado-de-risco, podiam se arriscar. Winnicott chamou de transicional os espaços que não podem ser censurados, para que os paradoxos se preservem; levamos (ou não) para a vida adulta, os espaços transicionais. Nesses espaços estamos em estado-de-risco, e o novo pode (ou não) surgir. Não nos esqueçamos, sem garantias, porém, paradoxalmente, é quando não as temos que se pode criar. E a censura, bem sabemos, costuma estar muito em nós, podemos ser juízes horríveis para nós mesmos.
Os espaços transicionais estão entre alguém e outro alguém, entre o livro e o leitor, entre eu e o mundo, infindáveis entres. Acima mencionei que um dos recursos usados para ultrapassar as dicotomias sem suprimir as contradições, seria o autor se inserir na situação e/ou contexto que está trazendo, tornando-se não apenas parte dele, mas um de seus elementos constituintes, como um dos caracteres de um ideograma. Outro recurso poderoso seria usar espaços transicionais - como os intervalos entre a arte, a ciência e a vida, por exemplo.
Estado-de-risco é ao mesmo tempo um intervalo, um lugar, um espaço transicional, um estado de percepção e consciência, um conceito e objeto transicional. Ao mesmo tempo singular – pois cada estado-de-risco só poderia ser único, é também absolutamente plural, pelo siples motivo de encontrar-se e se disseminar na vida. Uma das perspectivas de trabalhar nos intervalos seria a inclusão da simultaneidade: muitos aspectos ocorrendo simultaneamente.
Gosto muito quando FG afirma que “uma das funções do artista é criar o maravilhoso (ou o surpreendente)”, pois, nós humanos também somos feitos de monstros, fadas, bruxas, animais fantásticos; mas para mim o surpreendente nessa afirmação de FG é que, quando criamos novas referências, experiencialmente, quando usamos e trans-criamos conceitos, quando freqüentamos o estado de risco, nos sentimos vivos. Se não fizéssemos isso estaríamos submetidos todo o tempo a regras e referências apriori que existiram muito antes de nascermos e existirão (provavelmente) muito depois que nos formos. Assim, o surpreendente é também descobrir que não podemos criar a nós mesmo, nem ao mundo, mas podemos criar parcelas do mundo e parcelas de nós: a micro-política de Deleuze e Guattari.
Eliane Accioly, brasileira, é Poeta, Terapeuta, e  pesquisadora nos campos da psicanálise e da arte. Doutora em Comunicação e Semiótica, mestre em Psicologia Clínica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Publicou  "A palavra-insensata, poesia e psicanálise", e "Corpo-de-sonho, poesia e psicanálise".

Além da clínica, a arte é sua militância. Organizou oficinas de poesia de 1994 a 2001. No primeiro semestre de 2000 trabalhou na oficina O que é poesia?, com adolescentes da CentroCultural Monte Azul, em São Paulo. Em novembro de 2003 apresentou seus poemas no XI Encontro Internacional de Mulheres Poetas em Mixteca, México. (XI° Encuentro de Mujeres Poetas en el Pais de las Nubes). No México levou suas oficinas a lunos e colégios dos pueblos que visitou. É autora de livros de poemas, contos e romance, resenhas e artigos.